O DESPERTAR DO SENSÍVEL: Anatomia de uma guerra psicológica contra o Brasil
Jordan Peterson observou, em análise que deveria constar nos manuais de sobrevivência política, que "o indivíduo compassivo não é fraco" e que "representa algo necessário para a estabilidade"
I. A armadilha dos corações abertos
Jordan Peterson observou, em análise que deveria constar nos manuais de sobrevivência política, que “o indivíduo compassivo não é fraco. Na verdade, representa algo fundamentalmente necessário para a estabilidade das relações interpessoais.” O que o psicólogo canadense descreveu como dinâmica entre pessoas com alta sensibilidade emocional e aquelas movidas exclusivamente pelo controle e exploração é, talvez, a chave mais negligenciada para compreender o que ocorreu no Brasil entre 2019 e 2025.
Há um tipo de político que chora no banheiro. Que admite, diante de seiscentos pastores, ter recebido uma segunda vida. Que visita o local onde quase morreu para iniciar uma campanha, não por cálculo eleitoral, mas porque o trauma o acompanha como cicatriz visível na alma. Há também outro tipo: o que nunca chora, porque não possui a estrutura interior que produz lágrimas genuínas. O que simula emoção quando conveniente e a descarta quando inútil. O que transforma instituições em extensões de seu ego e confunde poder com identidade.
A história recente do Brasil é a colisão entre esses dois mundos.
Peterson descreve com precisão cirúrgica: “Aquele que explora não busca iguais. Busca espelhos. E a pessoa genuinamente disposta a refletir empatia torna-se a tela perfeita para as projeções alheias.” O Centrão não buscou em Bolsonaro um parceiro de governo. Buscou um espelho que refletisse legitimidade popular para suas práticas seculares. A mídia não buscou um presidente a ser fiscalizado. Buscou um bode expiatório que absorvesse a culpa por décadas de deterioração institucional. O sistema judiciário não buscou justiça. Buscou um réu que justificasse a expansão de poderes jamais previstos na Constituição.
II. O mecanismo da inversão: quando o acusador é o culpado
Existe um padrão em relacionamentos destrutivos que qualquer terapeuta reconhece: a pessoa que agride acusa a vítima de agressão. A que mente acusa o outro de mentir. A que manipula grita “manipulação” para o público. Robert Greene, em suas 48 Leis do Poder, codificou isso como estratégia deliberada: “Jogue com as emoções dos outros, mas nunca revele as suas.”
Considere a mulher que critica o marido por seguir perfis femininos nas redes sociais que usam fotos de biquíni na praia, enquanto ela mesma posta fotografias em trajes mínimos e pose sensual numa piscina. Ou o marido que é grosso e agressivo em privado, mas acusa a parceira de agressão em público. A que causa danos financeiros ao marido por extração e depois pede dinheiro por danos. O que afasta os filhos da mulher e, depois, diz que a mulher é que não quer cuidar dos filhos. Esses não são exemplos inventados. São padrões documentados por décadas de literatura psicológica.
Agora substitua os personagens.
A imprensa que acusou Bolsonaro de atacar jornalistas manteve, por quatro anos, cobertura 94% negativa segundo o Manchetômetro da UERJ. O mesmo establishment midiático que clamou por “democracia” redistribuiu verbas publicitárias para veículos alinhados durante governos anteriores sem que ninguém chamasse isso de “censura econômica”. A Folha de S.Paulo processou Bolsonaro por declaração de duplo sentido, mas celebrou charges que o retratavam como genocida antes de qualquer julgamento.
Peterson identifica o mecanismo: “Cada vez que a pessoa sensível perdoa, o mascarado fica mais ousado. Cada vez que ela cede para manter a paz, o outro interpreta como permissão para ir mais longe.” O Brasil assistiu a isso em tempo real. Bolsonaro cedeu ao Centrão em 2020. O Centrão exigiu o orçamento secreto. Bolsonaro aceitou Arthur Lira. Lira exigiu R$ 53 bilhões em emendas sem transparência. Cada concessão foi interpretada não como gesto de governabilidade, mas como sinal de fraqueza a ser explorada.
A traição, quando repetida, torna-se linguagem própria, diz Peterson. “O corpo registra. O espírito, por mais paciente que seja, começa a se rebelar.”
III. A pandemia como laboratório de manipulação da realidade
Gene Sharp, no clássico “Da Ditadura à Democracia”, ensina que todo poder depende de fontes específicas: autoridade moral, recursos humanos, habilidades técnicas, fatores psicológicos e sanções. A pandemia de COVID-19 ofereceu ao sistema brasileiro a oportunidade de atacar simultaneamente todas as fontes de poder de um presidente incômodo.
A autoridade moral foi destruída com a narrativa de “genocida”, repetida 693 mil vezes, uma para cada óbito, como se a contabilidade da morte fosse atribuição exclusiva do Executivo Federal num país onde governadores decretaram lockdowns e prefeitos administraram hospitais. Os recursos humanos foram atacados com prisões de empresários apoiadores, bloqueio de contas bancárias, cassação de mandatos parlamentares. As habilidades técnicas foram neutralizadas com a infiltração de ministérios por indicações do Centrão. Os fatores psicológicos foram bombardeados com a repetição industrial de que resistir a medidas autoritárias significava “negacionismo”.
Peterson descreve: “O empata, preso num ciclo de esperança e decepção, ajusta continuamente seus limites emocionais, acreditando que compreensão e amor eventualmente inspirarão mudança no outro. Mas a tolerância humana tem limites.”
Bolsonaro tolerou. Tolerou a CPI que o indiciou por crimes contra a humanidade sem ouvi-lo. Tolerou o PGR Augusto Aras, que engavetou denúncias contra adversários e nada fez contra as que o atingiam. Tolerou ministros do STF que investigavam, acusavam e julgavam os mesmos casos, concentração de funções que o ex-ministro Marco Aurélio chamou de “ponto fora da curva constitucional”. Tolerou até que a tolerância se transformasse no que Peterson chama de “fadiga emocional profunda, uma exaustão que não pode ser curada com descanso ou garantias”.
A crise do oxigênio em Manaus cristalizou a técnica. Sessenta pessoas morreram por asfixia em 14 de janeiro de 2021. O Ministério da Saúde, sob o general Pazuello, tinha sido advertido dias antes. Mas quem foi responsabilizado nacionalmente? O presidente que estava em Brasília. A narrativa ignorou que o governador Wilson Lima e o prefeito David Almeida administravam diretamente o sistema de saúde local. Ignorou que o colapso logístico tinha múltiplas causas. O importante era que a culpa tivesse endereço único.
Maquiavel ensinou que é melhor ser temido que amado, mas que o ideal é não ser odiado. O sistema brasileiro decidiu que Bolsonaro seria odiado, custasse o que custasse, porque homens odiados podem ser destruídos sem remorso coletivo.
IV. O centrão e a arte do descarte calculado
“O controlador prospera em padrões. Toda a sua estratégia gira em torno de repetição: idealizar, desvalorizar, descartar, sugar de volta e repetir”, ensina Peterson. “Com cada ciclo repetido, eles ficam mais ousados, mais arrogantes, mais convictos de seu direito.”
Em julho de 2018, Bolsonaro chamou o Centrão de “escória” e “o que há de pior no Brasil”. O general Augusto Heleno cantou em convenção: “Se gritar pega Centrão, não fica um, meu irmão.” Em 2020, Bolsonaro entregou cargos ao Centrão como “mal necessário”. Em 2021, Ciro Nogueira, que em 2017 acusara Bolsonaro de ter “caráter fascista”, assumiu a Casa Civil. Bolsonaro justificou: “Centrão é um nome pejorativo. Eu sou do Centrão.”
A idealização durou o tempo necessário para extrair R$ 53 bilhões em emendas de relator. A desvalorização começou na noite de 30 de outubro de 2022, quando Arthur Lira reconheceu a vitória de Lula antes mesmo de Bolsonaro se pronunciar. O descarte foi consumado em fevereiro de 2023, quando Lira foi reeleito com 464 votos, naquele momento sustentado pelo PT. O sugamento final parece estar chegando, no momento em que o Centrão reaparece oferecendo “apoio responsável” à candidatura de Flávio Bolsonaro. Ainda que visivelmente contrariados.
Peterson observa que “o empata pode ignorar a traição no início, racionalizá-la, ter empatia com ela, desculpá-la. Mas o subconsciente está tomando notas.”
A nota mais importante foi registrada em pesquisa Quaest de 2025: 78% dos deputados do Centrão defendiam que Bolsonaro desistisse de disputar 2026. Não por convicção democrática. Por cálculo de sobrevivência. O bloco que lucrou com a aliança agora avalia que manter distância é mais rentável.
V. A arquitetura judicial da humilhação
Existe uma diferença fundamental entre justiça e perseguição institucionalizada. A justiça opera com regras claras, prazos definidos, distribuição aleatória de processos, separação entre quem investiga, quem acusa e quem julga. A perseguição opera com inquéritos sem prazo, relatores escolhidos a dedo, sigilo absoluto que impede defesa adequada, e a mesma autoridade acumulando funções que deveriam ser segregadas.
O Inquérito das Fake News foi instaurado em março de 2019 pelo então presidente do STF Dias Toffoli, de ofício, sem provocação do Ministério Público. Alexandre de Moraes foi designado relator sem sorteio. A ex-PGR Raquel Dodge considerou o procedimento inconstitucional. O ex-ministro Marco Aurélio votou sozinho contra sua validação. Nenhuma dessas vozes foi ouvida pela maioria.
Peterson descreve o que acontece quando alguém é submetido a esse tratamento prolongado: “A dissonância cognitiva cresce mais forte. A pessoa é dilacerada entre sua crença no potencial de mudança do outro e a evidência inegável de abuso consistente. Esse conflito interno cria névoa mental, um estado em que ela questiona sua realidade, duvida de suas percepções e começa a sentir que está perdendo o senso de si mesma.”
Bolsonaro foi incluído como investigado em agosto de 2021, após live questionando as urnas. Daí em diante, acumularam-se inquéritos: milícias digitais, joias sauditas, cartão vacinal, tentativa de golpe. Cada novo inquérito servia para manter a pressão constante, o que Robert Greene chamaria de “criar uma atmosfera de imprevisibilidade para manter o alvo permanentemente desequilibrado”.
A condenação de setembro de 2025, 27 anos e 3 meses por tentativa de golpe de Estado, foi decidida por 4 votos a 1. O único voto divergente, de Luiz Fux, foi tratado pela imprensa como excentricidade. Nenhum veículo maior questionou por que um processo dessa magnitude foi julgado por turma de cinco ministros, e não pelo plenário de onze.
VI. O paradoxo da empatia como força
Peterson faz uma observação que deveria ser gravada em bronze: “O despertar do superempata não é um processo gentil. Não acontece num momento de clareza ou com o estalar de dedos. É uma evolução lenta, frequentemente dolorosa, desencadeada pelo peso de traições repetidas.”
Bolsonaro chorou em público mais vezes do que qualquer presidente brasileiro desde a redemocratização. Admitiu chorar sozinho no banheiro. Disse que ninguém deveria desejar sua cadeira sem estar “muito bem preparado psicologicamente”. Em novembro de 2025, durante a prisão domiciliar, sofreu crises de soluço de 23 horas, vômitos e queda de pressão, combinação de sequelas da facada com o estresse emocional do julgamento.
A narrativa dominante tratou essas manifestações como fraqueza, instabilidade, inadequação para o cargo. Mas Peterson inverte a lógica: “A sensibilidade não é uma fraqueza. É uma força. As qualidades que o egocêntrico uma vez manipulou, a bondade, a compreensão, a paciência, tornam-se ferramentas de cura e fortalecimento.”
A sensibilidade de Bolsonaro, sua incapacidade de dissimular, sua tendência a reagir emocionalmente a provocações, foi precisamente o que o tornou intolerável para um sistema construído sobre dissimulação profissional.
Ele expunha, simplesmente por contraste, a frieza calculada de adversários que nunca derramaram uma lágrima genuína em público.
VII. A indicação de Flávio e o que ela revela
Gene Sharp ensinou que movimentos de resistência eficazes dependem de identificar corretamente as fontes de poder do regime e atacá-las sistematicamente. O que o sistema brasileiro mais teme não é um líder carismático, porque líderes carismáticos podem ser isolados e destruídos. O que teme é a institucionalização de uma alternativa.
A indicação de Flávio Bolsonaro como presidente do PL representa exatamente isso. Não é a escolha mais óbvia em termos de carisma. Não é a mais agressiva em termos de retórica. É, precisamente por isso, a mais perigosa para o sistema.
Peterson descreve o estágio avançado da recuperação: “A pessoa que passou pela experiência deixa de olhar para trás com arrependimento e começa a olhar para frente com intenção. O sofrimento não foi sem sentido. Foi um ponto de virada. Ela descobre que não está quebrada. Está evoluindo.”
Flávio representa a evolução. Um político que aprendeu, observando o pai, exatamente como o sistema opera. Que viu de dentro como o Centrão seduz e descarta. Que testemunhou como a mídia constrói narrativas e como o Judiciário pode ser instrumentalizado. E que, crucialmente, não carrega o fardo emocional que torna seu pai vulnerável a provocações.
O sistema já está reagindo. A indicação mal foi anunciada e começaram as matérias sobre “dinastia”, “nepotismo”, “radicalização”. É o padrão que Peterson identifica: “Quando o empata começa a se retirar, o manipulador frequentemente escala suas táticas. Pode fazer papel de vítima, fazer promessas, tratamento de gelo, ou explodir em raiva numa tentativa desesperada de recuperar o controle.”
VIII. A hipocrisia como método de governo
Robert Greene codificou como a Lei 3 do Poder: “Oculte suas intenções.” E como a Lei 32: “Jogue com as fantasias das pessoas.” O sistema brasileiro elevou essas leis à política de Estado.
A mesma imprensa que clamou por “transparência” durante quatro anos silenciou sobre os R$ 53 bilhões do orçamento secreto distribuídos sem qualquer prestação de contas. Os mesmos ministros que invocaram defesa da democracia operaram inquéritos secretos, com denúncias anônimas, sem prazo para conclusão, violando princípios básicos do devido processo legal. Os mesmos partidos que acusaram Bolsonaro de “aparelhamento” dividiram entre si todos os cargos do segundo e do terceiro escalão do governo Lula em menos de seis meses.
Peterson descreve a revelação: “A pessoa começa a ver que sua lealdade foi mal direcionada, sua bondade manipulada, sua paciência explorada. Enquanto essa verdade afunda, ela começa a se desconectar emocionalmente.”
O eleitorado brasileiro está nesse estágio. Pesquisas mostram que 62% desconfiam das instituições. Que 58% consideram a mídia parcial. Que 71% acreditam que “políticos são todos iguais”. Esse cinismo não é apatia. É o início do desligamento que precede a reorganização.
IX. O despertar coletivo
“Existe um ponto, um ponto de ruptura”, diz Peterson, “onde o indivíduo que passou a vida absorvendo o caos alheio, que sacrificou seus próprios limites em nome da paz, desperta. E o momento em que finalmente se liberta não é silencioso. É uma revolução psicológica.”
O 8 de janeiro de 2023 foi descrito pelo sistema como tentativa de golpe. Mas também pode ser lido como manifestação desorganizada de um despertar coletivo que ainda não encontrou forma adequada. Milhares de pessoas que se sentiram traídas pelo sistema eleitoral, ignoradas pela mídia, desprezadas pelas elites, explodiram de maneira caótica precisamente porque ninguém canalizou essa energia de forma construtiva.
A condenação de Bolsonaro, a prisão de centenas de manifestantes, o exílio de outros tantos representam a tentativa do sistema de esmagar esse despertar antes que se organize. Mas Peterson adverte: “Uma vez que a pessoa começa a ver claramente, não há como desver. Cada evento passado, cada momento de manipulação, cada ciclo de tensão e alívio é reinterpretado através de uma lente de honestidade brutal.”
O eleitorado bolsonarista não vai “superar” a experiência de 2019-2025. Vai processá-la. Vai aprender com ela. Vai se reorganizar a partir dela.
X. A Projeção como arma de guerra psicológica
Há um fenômeno que a psicologia documenta há mais de um século, mas que raramente é discutido em análises políticas: a tendência de certas personalidades acusarem os outros precisamente daquilo que elas mesmas praticam. Não se trata de hipocrisia comum, que é consciente e calculada. Trata-se de algo mais profundo: uma incapacidade estrutural de reconhecer os próprios defeitos, combinada com uma necessidade compulsiva de localizá-los no outro.
Peterson descreve o mecanismo com clareza: “O explorador não procura resolver conflitos. Procura provocar. E a provocação só funciona enquanto a pessoa que tem empatia continua reagindo. Cada vez que ela tenta se explicar, o malicioso distorce os fatos. Cada vez que ela compartilha vulnerabilidade, isso é usado contra ela. Cada discussão se torna um ciclo sem resolução, porque o carente de atenção não está discutindo para resolver. Está discutindo para provocar.”
O Brasil assistiu a esse padrão em escala industrial. O mesmo STF que acusou Bolsonaro de ameaçar a democracia concentrou poderes de investigação, acusação e julgamento numa única figura, violando o princípio mais elementar do Estado de Direito. A mesma imprensa que denunciou “ataques à liberdade de expressão” aplaudiu o fechamento de contas em redes sociais, a prisão de jornalistas e a censura prévia de veículos de comunicação. Os mesmos partidos que gritaram “fascismo” operaram, durante décadas, esquemas de corrupção que desviaram bilhões dos cofres públicos, financiaram ditaduras estrangeiras e aparelharam o Estado com militantes ideológicos.
Robert Greene identificou essa tática como variação da Lei 7: “Faça os outros trabalharem por você, mas sempre fique com o crédito.” Em sua versão política brasileira: faça os outros carregarem a culpa por você, mas sempre fique com a virtude.
O caso mais emblemático foi a acusação de “golpismo”. Bolsonaro questionou o sistema eleitoral, pediu auditoria das urnas, organizou manifestações pacíficas. Foi acusado de tentar golpe de Estado. Enquanto isso, o sistema operou inquéritos secretos sem base legal, prendeu adversários políticos sem flagrante ou ordem judicial fundamentada, cassou mandatos de parlamentares eleitos e interveio diretamente no processo eleitoral por meio de decisões monocráticas que alteraram regras a meses do pleito. Qual dessas condutas se aproxima mais da definição técnica de ruptura institucional?
Peterson observa: “A pessoa que explora prospera na confusão. Quanto mais a pessoa sensível tenta esclarecer, mais o megalomaníaco distorce. Chega um ponto em que a pessoa sensível percebe que não está lidando com alguém que busca entendimento. Está lidando com alguém que busca dominação através do caos.”
A acusação de “antidemocrático” contra Bolsonaro seguiu o mesmo roteiro. Um presidente que se submeteu a duas eleições, aceitou derrotas legislativas, governou sob fiscalização hostil do Congresso, da imprensa e do Judiciário, foi pintado como tirano em potencial. Enquanto isso, ministros do STF legislaram por decreto, o Congresso aprovou orçamentos secretos, e a imprensa funcionou como departamento de propaganda de um dos lados. A projeção era tão escancarada que só não a via quem não queria ver.
O objetivo dessa técnica não é convencer os que pensam. É confundir os que não pensam. É criar uma névoa tão densa que a distinção entre agressor e vítima se perca. É fazer com que o público, exausto de tentar entender quem está certo, conclua que “os dois lados são iguais” e se retire do debate. A apatia do cidadão comum é a vitória do sistema. Porque sistemas não precisam de apoio entusiástico. Precisam apenas de ausência de resistência organizada.
Gene Sharp advertiu que todo regime depende, em última instância, da obediência dos governados. A projeção sistemática de culpa serve precisamente para paralisar a resistência. Se o cidadão não sabe mais quem é o opressor, como pode resistir? Se acredita que “todos são corruptos”, por que se engajaria em qualquer causa? A confusão moral é o melhor aliado da tirania disfarçada.
XI. A Reconstrução da Identidade Após o Dilúvio
Peterson dedica parte significativa de sua análise ao que acontece depois que a pessoa sensível finalmente rompe o ciclo destrutivo: “O processo de reclamar a própria voz frequentemente começa pequeno. Pode ser um ‘não’ quieto onde antes havia concordância automática. Pode ser afastar-se de uma conversa projetada para provocar. Pode ser expressar um sentimento sem justificá-lo ou afirmar uma necessidade sem culpa. Esses momentos parecem arriscados no início. O medo de retaliação, rejeição ou ridículo ainda paira. Mas a cada ato de autoexpressão, a pessoa acumula evidências: ela sobreviveu. O mundo não acabou. Sua verdade não a destruiu. A libertou.”
O movimento que se formou em torno de Bolsonaro está nesse estágio. Depois de sete anos de bombardeio ininterrupto, de derrotas judiciais, de prisões, de exílios, de cassações, de humilhações públicas, algo deveria ter morrido. A lógica do sistema presumia que a base bolsonarista se dispersaria após a condenação do líder. Que os 45 mil presentes em Copacabana em abril de 2024 eram o canto do cisne de um movimento derrotado. Que a direita brasileira voltaria à irrelevância de antes de 2018.
Não foi o que aconteceu.
Peterson explica o motivo: “A cura também exige a reconstrução de limites. Limites reais, inegociáveis, firmes. A pessoa que antes abria espaço para o caos alheio agora aprende a proteger sua paz. Começa a dizer não sem pedir desculpas. Corta contato quando necessário. Deixa que as pessoas conquistem acesso ao seu mundo emocional em vez de oferecê-lo gratuitamente. Esses limites não são muros. São portas com fechaduras. Não isolam a pessoa. Protegem-na.”
A direita brasileira está aprendendo a construir fechaduras. Está criando estruturas alternativas de comunicação que não dependem da boa vontade de plataformas controladas pelo sistema. Está formando redes de apoio jurídico para os perseguidos. Está organizando-se em partidos e movimentos que sobrevivem independentemente de um único líder. Está, em suma, deixando de ser um fenômeno emocional para tornar-se uma força institucional.
Maquiavel ensinou que “os homens ofendem ou por medo ou por ódio”. Acrescentaria que também ofendem por vergonha ou por culpa. O sistema brasileiro ofendeu por medo. Medo de que Bolsonaro representasse algo maior que ele mesmo. Medo de que a direita brasileira, historicamente fragmentada e desorganizada, finalmente encontrasse um eixo de articulação. Medo de que o povo, uma vez desperto, não voltasse a dormir. E também por vergonha e culpa de tudo o que já fizeram e fazem há mais de um século na república.
Esse medo era justificado. Porque, como Peterson observa, “a pessoa também começa a se reconectar com partes de si mesma que foram suprimidas para sobreviver ao controle do histérico. Sua criatividade, sua alegria, sua confiança, seus desejos, tudo começa a ressurgir. Ela começa a fazer coisas não para ser aceita, mas porque lhe trazem alegria. Para de buscar permissão externa para existir. Sua vida se torna sua novamente. Pedaço por pedaço.”
O bolsonarismo de 2025 não é o de 2018. Perdeu a ingenuidade de acreditar que bastava vencer eleições para mudar o país. Perdeu a ilusão de que o sistema jogaria limpo se tratado com respeito institucional. Perdeu a esperança de que a grande imprensa algum dia seria justa ou de que o Judiciário operaria com imparcialidade. Essas perdas, aparentemente negativas, são, na verdade, ganhos imensos. Porque ilusões perdidas não voltam, e quem opera sem ilusões opera com eficácia.
Peterson descreve a transformação final: “A pessoa torna-se emocionalmente inalcançável para o aliciador. Tentativas de provocar reações emocionais são recebidas com indiferença ou desengajamento calmo. Mensagens manipuladoras são ignoradas. Tentativas de sugar de volta são reconhecidas pelo que são e imediatamente bloqueadas. O sem empatia se vê trancado para fora do mundo emocional da pessoa. Incapaz de reentrar, não importa qual tática use.”
A indicação de Flávio Bolsonaro é sintoma dessa maturação. Um movimento que há três anos teria exigido o nome mais combativo, o discurso mais inflamado, a postura mais agressiva agora aceita uma liderança que privilegia a construção sobre o confronto. Não porque tenha desistido de lutar. Mas porque aprendeu que há formas de luta mais eficazes que o embate frontal permanente.
Gene Sharp catalogou 198 métodos de ação não violenta, a maioria dos quais depende mais de uma organização paciente do que de um heroísmo espetacular. A direita brasileira está descobrindo esse repertório. Está aprendendo que ocupar espaços institucionais importa mais que vencer debates nas redes sociais. Formar quadros técnicos competentes é mais decisivo do que produzir influenciadores carismáticos. Construir alternativas econômicas, educacionais e culturais é mais duradouro do que denunciar as perversões do sistema.
Peterson conclui esse estágio da jornada com uma observação que deveria ser meditada por todos os que participam desse processo: “Essa transformação não passa despercebida. Pessoas ao redor começam a comentar sobre a mudança. Há uma nova energia na forma como a pessoa fala, se porta, toma decisões. Ela irradia uma força quieta que os outros respeitam. O desvirtuado, observando à distância, fica atônito e impotente. A pessoa que ele uma vez controlou, manipulou e drenou emocionalmente agora está plenamente em seu poder. Não mais acessível emocionalmente, não mais disposta a participar de ciclos tóxicos.”
O sistema brasileiro ainda não percebeu que perdeu. Continua operando como se a perseguição a Bolsonaro fosse resolver o problema que Bolsonaro representa. Continua acreditando que prender líderes elimina movimentos. Continua presumindo que o povo brasileiro, uma vez suficientemente intimidado, manipulado, controlado, comprado e subvertido, voltará à docilidade de sempre.
É um erro que a história costuma punir com severidade.
XII. Conclusão: A paz como declaração de poder
Peterson encerra sua análise com uma observação que deveria servir de epígrafe para os próximos anos da política brasileira: “Nesse espaço, o manipulador de realidades torna-se irrelevante. Não porque a dor que causou não importasse, mas porque a pessoa escolheu equilibrar sua paisagem emocional. Cada provocação ignorada, cada momento de calma escolhida, é um passo para longe do antigo eu e um passo na direção da autonomia.”
Flávio Bolsonaro representa a possibilidade de uma direita brasileira que aprendeu a não reagir emocionalmente a cada provocação. Que entendeu que a paz interior é mais poderosa que a indignação constante. Que descobriu que “o controle termina onde a reação termina. A liberdade começa não no momento em que a pessoa se afasta do eterno adolescente. Começa no momento em que reclama sua voz.”
O sistema vai continuar provocando. Vai continuar distorcendo. Vai continuar acusando os outros daquilo que ele próprio pratica. É sua natureza. Como Peterson observa: “O caçador de reações pode continuar a provocar, cutucar, procurar uma reação. Mas a pessoa aprendeu a lição mais importante de todas: o controle acaba onde a reação acaba.”
A tarefa da direita brasileira nos próximos anos é construir institucionalidade. Formar quadros. Educar bases. Preparar um bolo para uma cereja que possa orná-lo. Criar alternativas reais de poder que independam apenas da cereja, mas sim do bolo. Gene Sharp chamou isso de “construir estruturas paralelas que eventualmente tornem o regime obsoleto”.
Bolsonaro foi o primeiro ato de um despertar que levará décadas para se completar. Flávio pode ser o segundo. Ou o terceiro. O importante é que o processo começou e não pode ser desfeito.
Porque, como Peterson conclui: “A pessoa que passou pela experiência torna-se uma contradição viva às mentiras do manipulador. Onde ele tentou destruir, ela se construiu. Onde ele tentou silenciar, ela agora fala. Onde ele criou dúvida, ela encontrou certeza. A dor que uma vez sentiu como maldição tornou-se professora, guia, fonte de força. E através dessa transformação, ela se torna não apenas curada, mas intocável.”
O Brasil está aprendendo a ser intocável.
“A voz que estava escondida sob o medo torna-se o hino da libertação.” — Jordan Peterson



Excelente.