QUEM CRITICA BOLSONARO CRITICA A CEREJA, NÃO O BOLO
A profecia ignorada de Olavo de Carvalho e a cegueira voluntária de uma direita que prefere mirar no sintoma a enfrentar a doença
Há um tipo peculiar de cegueira que acomete certas inteligências. Não é a cegueira do ignorante, que desconhece por falta de acesso à informação. É a cegueira do homem que, diante de um incêndio, critica o bombeiro por ter molhado o tapete. Enxerga o detalhe, ignora a catástrofe. Vê a cereja, mas finge não ver o bolo.
Em 29 de novembro de 2016, quando os gritos de “Bolsonaro 2018” já ecoavam pelas ruas de um Brasil exausto do lulopetismo, Olavo de Carvalho publicou um texto que deveria ter sido lido, relido e memorizado por todo aquele que se pretendia de direita. Não foi. O texto dizia:
“Tantos, hoje, dizem querer o Brasil de volta, e, em vista disso, gritam: ‘Bolsonaro 2018’. Não quero ser estraga-prazeres, mas os comunistas não começaram a nos tomar o Brasil pela Presidência da República. Tomaram primeiro as universidades, depois a Igreja Católica e várias das protestantes, depois os sindicatos, especialmente de funcionários públicos, depois a grande mídia, depois o sistema nacional de ensino, depois o sistema judiciário, depois os partidos políticos todos, e por fim, depois de quarenta anos de esforços, a cereja do bolo: a Presidência da República.”
E concluía com a pergunta que ninguém quis responder: “Vocês acham REALMENTE que, tomando a cereja de volta, o bolo inteiro virá junto?”
A resposta veio da história. E foi negativa.
O bolo que ninguém quer ver
Antes de criticar a cereja, convém examinar o bolo. Ele tem 103 anos de preparo.
Começa em março de 1922, quando 73 militantes fundaram o Partido Comunista Brasileiro num congresso clandestino em Niterói. Setenta e três pessoas. Cem anos depois, a esquerda controla as principais universidades do país, a maior parte do Judiciário, a quase totalidade da grande imprensa, o aparelho sindical, as burocracias estatais, as ONGs bilionárias, os organismos internacionais que pautam nossas políticas públicas e, naturalmente, a Presidência da República. De 73 militantes reunidos num porão a um sistema hegemônico que atravessa gerações e sobrevive a qualquer alternância eleitoral. Isso é o bolo.
A esquerda não chegou ao poder pela via eleitoral. Chegou às eleições pelo poder. Primeiro conquistou mentes, depois votos. Primeiro ocupou redações, cátedras, púlpitos e tribunais, depois ocupou ministérios. O gramscismo não é teoria conspiratória de manual mimeografado. É o método que está documentado nas atas do Foro de São Paulo, nos currículos das faculdades de humanas, nos julgamentos do Supremo Tribunal Federal, nas pautas editoriais da Folha de S. Paulo. Basta olhar.
Quando Jair Bolsonaro assumiu a Presidência em janeiro de 2019, encontrou um Estado aparelhado por quatro décadas de ocupação sistemática. Treze ministros do STF haviam sido indicados pelo PT. Lula nomeou oito, Dilma nomeou cinco. Os concursos públicos selecionaram gerações de burocratas formados por professores marxistas. As agências reguladoras respondiam a interesses que nada tinham a ver com o interesse nacional. A Polícia Federal investigava segundo critérios que pareciam obedecer a uma hierarquia paralela. Os generais que cercavam o presidente tinham sido treinados para manter a ordem, não para fazer revolução. E as revoluções, como Olavo nunca cansou de repetir, não se fazem de cima para baixo.
Era um homem só contra um sistema. A cereja contra o bolo.
A profecia cumprida
Seis meses depois da posse de Bolsonaro, em 26 de junho de 2019, Olavo voltou ao tema. O tom já não era de advertência, mas de constatação melancólica:
“Eleger um presidente sem levar isso em conta é o mesmo que puxar a cereja na esperança de, com isso, trazer o bolo junto.”
E acrescentou a sentença que resume toda a tragédia: “Se você vence uma eleição, mas não conquista um único lugarzinho na mídia ou no sistema universitário, você garante que essa vitória será provavelmente a última.”
Foi exatamente o que aconteceu. A direita venceu uma eleição e perdeu todas as outras batalhas. Não conquistou um canal de televisão. Não fundou uma universidade. Não formou um corpo de juristas capaz de fazer frente ao ativismo judicial. Não ocupou uma única cadeira relevante no sistema que realmente governa o país. E quando o governo acabou, acabou junto qualquer vestígio institucional da sua passagem.
O que restou? Um ex-presidente inelegível, presos políticos esquecidos nos calabouços da República e uma direita fragmentada que gasta mais energia criticando Bolsonaro do que combatendo o sistema que o destruiu.
Os críticos da cereja
Existe hoje um gênero curioso de comentarista político. Apresenta-se como direitista, mas sua principal atividade é criticar a direita. Não a esquerda no poder, não o sistema hegemônico, não os juízes que legislam, não os burocratas que sabotam, não os jornalistas que mentem. Critica Bolsonaro. Critica a “falta de articulação”. A “retórica polarizadora”. A “incapacidade de dialogar”. A “ausência de um projeto”.
É uma crítica que soa sofisticada nos salões, mas revela uma incompreensão fundamental do problema. Ou pior: revela a recusa deliberada de compreendê-lo.
Criticar Bolsonaro por não ter conseguido reformar o sistema é como criticar um náufrago por não ter construído um transatlântico com os destroços. Ele tinha o quê? Um mandato de quatro anos, um Congresso hostil, um Judiciário francamente inimigo, uma mídia dedicada à sua destruição vinte e quatro horas por dia, uma burocracia que sabotava cada decreto, cada nomeação, cada iniciativa. Tinha generais que acreditavam em “pacificação” enquanto o inimigo acreditava em aniquilação. Tinha aliados que o abandonaram na primeira dificuldade, assessores que vazavam informações para a imprensa, ministros que conspiravam nos bastidores.
E tinha, sobretudo, uma direita que nunca se deu ao trabalho de construir as bases institucionais que permitiriam a qualquer governo de direita sobreviver.
Onde estavam, durante os quarenta anos de marcha gramsciana, os intelectuais conservadores que deveriam ter disputado as universidades? Onde estavam os empresários que deveriam ter financiado jornais, revistas, think tanks, centros de formação? Onde estavam os juristas que deveriam ter criado uma doutrina capaz de fazer frente ao progressismo togado? Onde estavam os artistas, os cineastas, os romancistas, os dramaturgos? Onde estão os estudantes de universidades públicas de direita conquistando diretórios acadêmicos?
Estavam, na melhor das hipóteses, ganhando dinheiro. Na pior, financiando a esquerda em troca de paz social e de isenções fiscais. Quando acordaram, era tarde. E agora querem cobrar de Bolsonaro a conta de décadas de omissão.
O paradoxo da civilidade
Há algo de profundamente desonesto na exigência de “civilidade” que essa direita faz ao bolsonarismo. É como exigir boas maneiras de quem está sendo espancado.
O sistema não opera com civilidade. O sistema opera com inquéritos sigilosos, prisões preventivas por tempo indeterminado, quebras de sigilo bancário e telefônico sem fundamentação, buscas e apreensões que mais parecem invasões militares, censura prévia a jornalistas e parlamentares, cassação de mandatos por “abuso de direito”, inelegibilidade retroativa por “atos antidemocráticos”. O sistema persegue, prende, exila, destrói reputações e carreiras. O sistema usa a lei como arma e o Direito como disfarce.
Mas a direita civilizada quer que Bolsonaro seja “moderado”. Que fale baixo. Que respeite as instituições que o perseguem. Que dialogue com quem quer destruí-lo. Que aceite as regras de um jogo em que só um dos lados pode jogar.
É a mesma direita que, diante do lawfare sistemático, pondera sobre “excessos de ambos os lados”. Que, diante de presos políticos sem julgamento, preocupa-se com o “discurso de vitimização”. Que, diante da censura explícita, lamenta “a polarização que impede o debate”. Uma direita que quer ser aceita pelo sistema que deveria combater. Que busca respeitabilidade nos mesmos salões onde se decide a sua destruição.
Olavo tinha uma palavra para isso: covardia intelectual. A incapacidade de encarar o inimigo de frente e chamá-lo pelo nome, preferindo a posição confortável do crítico equidistante, do analista ponderado, do comentarista que distribui censuras para todos os lados como se houvesse simetria entre o agressor e a vítima.
Os três cozinheiros do bolo
Se o bolo foi assado durante um século pela esquerda brasileira, ele ganhou novos ingredientes nas últimas décadas. Três projetos globais de poder disputam hoje influência sobre o Brasil, e nenhum deles tem o menor interesse em nossa soberania.
O globalismo atlântico, sediado em Davos, Bruxelas e Nova York, opera por meio de ONGs bilionárias, agendas ESG, tratados climáticos e organismos internacionais. A Open Society de George Soros, agora comandada por seu filho Alex, despejou mais de 600 milhões de reais no Brasil nos últimos anos, financiando desde a descriminalização de drogas até a “justiça racial”. A Agenda 2030 da ONU tornou-se política de Estado, e nosso Plano Plurianual obedece aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável antes de obedecer à Constituição.
O globalismo eurasiano, liderado por Pequim, compra o que pode: energia, portos, mineração, agronegócio. A State Grid controla boa parte da distribuição elétrica do país. A China Three Gorges opera nossas hidrelétricas. A COFCO domina a cadeia “da semente ao porto”. Os investimentos chineses no Brasil somam 66 bilhões de dólares, e cada dólar compra um pedaço de soberania.
O globalismo islâmico, menos visível, mas igualmente presente, opera através dos fundos soberanos do Golfo Pérsico. O Catar é acionista relevante de bancos e empresas brasileiras. Os Emirados controlam redes de alimentação e projetam uma nova bolsa de valores no Rio. A Arábia Saudita é o maior acionista individual de um dos maiores frigoríficos do país.
Três projetos de poder que não se coordenam entre si, mas que convergem num ponto: nenhum deles quer um Brasil forte, soberano e cristão. Querem um Brasil dócil, um mercado consumidor, um fornecedor de commodities, um território a ser explorado. E encontram no sistema hegemônico brasileiro, aparelhado pela esquerda, o parceiro ideal para seus objetivos.
A direita que critica Bolsonaro menciona algum desses processos? Denuncia a desnacionalização de ativos estratégicos? Questiona os tratados que amarram nossa política ambiental e energética? Examina de onde vem o dinheiro das ONGs que pautam nosso debate público?
Não. Prefere criticar um tuíte mal escrito, uma fala desastrada, uma falta de coragem de “meter o pé na porta", como se a porta, ao ser rompida, fosse automaticamente romper todo o bolo, ou uma “ausência de projeto”.
O que Olavo tentou ensinar
A tragédia de Olavo de Carvalho não foi ter sido ignorado pela esquerda. A esquerda o odiou precisamente porque o compreendeu. A tragédia foi ter sido ignorado pela direita que ele tentou formar.
Sua tese era simples e estava fundada em Gramsci lido ao contrário: a política é um subproduto da cultura. Antes de vencer eleições, é preciso vencer a batalha das ideias. Antes de ocupar ministérios, é preciso ocupar mentes. Antes de governar, é preciso criar as condições que tornam o governo possível. Sem hegemonia cultural, o poder político é frágil, efêmero, ilusório. É a cereja sem o bolo.
Em 2006, quase vinte anos atrás, ele escreveu: “A ação política é um subproduto da cultura e, no estado em que as coisas estão, nenhuma ação política inteligente, ao menos em escala federal, é previsível nas próximas duas ou três gerações”.
Duas ou três gerações. Quarenta a sessenta anos de trabalho paciente, sistemático, de longo prazo. Era isso que a direita precisava fazer. Em vez disso, quis atalhos. Quis eleger um presidente e resolver o problema em quatro anos. Quis a cereja sem se dar ao trabalho de preparar e assar o bolo.
O resultado está aí. Um movimento popular destruído, uma liderança perseguida, presos políticos abandonados. Uma direita que aprendeu menos do que nada com a experiência. Que continua criticando a cereja enquanto o bolo apodrece.
A autocrítica necessária
Se este artigo tem algum propósito, é provocar uma reflexão incômoda.
Àqueles que criticam Bolsonaro “pela direita”, pergunto: o que vocês construíram? Quantas universidades fundaram? Quantos jornais criaram? Quantos juristas formaram? Quantos juízes elegeram? Quantos promotores influenciaram? Quantas editoras mantêm? Quantos cineastas financiam? Quantos artistas revelaram? Quantos diretórios acadêmicos de universidades públicas conquistaram?
Bolsonaro, com todas as suas limitações, enfrentou o sistema de peito aberto. Perdeu. Mas lutou. E vocês? Vocês que exigem articulação: articularam o quê, com quem, para quê? Vocês que pedem projeto: onde está o projeto de vocês? Vocês que cobram estratégia: qual foi a estratégia de vocês nos últimos 40 anos?
A cereja, por mais imperfeita que fosse, era a única cereja disponível. Era o que tínhamos. O que fizemos com ela? Criticamos. Abandonamos. Fingimos que o problema era ela, não o bolo.
Agora o bolo está mais forte do que nunca. Fermentado, crescido, dominante. E não há cereja à vista.
A escolha que resta
A direita brasileira tem diante de si uma escolha. Pode continuar criticando Bolsonaro, analisando seus erros, lamentando suas falhas, distribuindo culpas. Pode continuar fingindo que o problema era o capitão, e não o sistema centenário que o engoliu.
Ou pode, finalmente, fazer o que Olavo pediu que fizéssemos há décadas: trabalhar. Formar quadros. Criar instituições. Ocupar espaços. Disputar a hegemonia. Assar o próprio bolo.
É um trabalho de gerações. Sem glamour, sem holofotes, sem a gratificação imediata da vitória eleitoral. Um trabalho que exige paciência, disciplina, visão de longo prazo. Tudo o que a direita brasileira historicamente não teve.
Mas é o único trabalho que importa. Porque sem bolo, não há cereja que se sustente. E quem critica apenas a cereja, ou não entendeu nada, ou entendeu tudo e prefere a derrota confortável à vitória trabalhosa.
Olavo morreu em janeiro de 2022. Morreu deixando a mesma pergunta que fez em 2016:
“Vocês acham REALMENTE que, tomando a cereja de volta, o bolo inteiro virá junto?”
A resposta continua sendo não. E continuará sendo, enquanto a direita preferir criticar cerejas a assar bolos.
Bolsonaro está sendo morto politicamente e fisicamente pelo sistema. Mas a ideia que Bolsonaro originou é imortal. É uma cereja que não morrerá, à espera de um bolo que a sustente. Ideias não morrem. Ainda bem que é assim. Que essa cereja continue inspirando a direita a prosseguir na confecção de um bolo melhor do que o atual. Com um bolo decente, a cereja em si seria um prêmio de verdade, e não de consolação
.
A receita, Olavo deixou. Falta só quem queira ir para a cozinha.


